sexta-feira, 2 de abril de 2010

O Menino do Dedo Verde



Nestes tempos da Conferência de Kopenhagen sobre as mudanças climáticas que ameaçam a vida na Terra, onde todos falam muito e nada ou quase nada querem fazer, efetivamente, para resolver essa situação terrível, me lembrei da bela história de Tistou, o Menino do Dedo Verde, publicado em 1957 na França. Seu autor, Maurice Druon, um escritor parisiense, que nasceu em 23 de Abril de 1918 e foi também jornalista, poeta, presidente de Academia Francesa de Letras e Ministro da Cultura na década de 70. Druon, que tinha um avô brasileiro, o maranhense Odorico Mendes, tradutor das obras de Homero e Vergílio, morreu em 14 de Abril de 2009, aos 91 anos de idade. Seu livro fantástico, versa sobre a natureza e ecologia, as diferenças sociais e econômicas, poluição, guerra, família, poesia, amor, vida e principalmente, beleza! Escrito na época da Guerra Fria, não havia espaço e tolerância para outras concepções políticas e existenciais. Qualquer voz contestadora era calada, analogamente ao que o Sr. Trovões provavelmente faz com Tistou. Foi o único livro infantil de Druon, que à maneira de Saint-Exupéry deve ser lido por crianças de todas as idades, sempre.

A missão do menino é despoluir, humanizar e reintroduzir a poesia no universo do qual ela se encontra exilada. Sobre um mundo cinza e enlutado, Tistou deixa impressões digitais misteriosas que suscitam o reverdecimento e a alegria, nos faz perceber que existem milhares de Tistous espalhados pelo mundo; capazes de florescer e descobrir que também possuem um polegar verde, ou seja, um talento oculto, uma voz pacificamente contestadora que pode ser observada no menino Tistou; em oposição a esse discurso por liberdade e liberdade de expressão, está a voz retumbante e opressora do Sr. Trovões.




Esse livro é um recado de paz, reflexão e sabedoria às crianças, inclusive àquela criança que sobrevive em nós, e esse é o recado que gostaria de transmitir aos meus leitores. Com um debate aberto aos temas atuais e circunstâncias do mundo contemporâneo, onde as incessantes atividades no sentido da sobrevivência deixam pouco espaço na vida das pessoas para uma reflexão de caracter filosófico, existencial e humanista sobre o verdadeiro sentido da vida. Será que alguém, algum dia por falta de dinheiro no bolso não terá um copo de água para beber? Será que neste dia, caro leitor, sem perceber, estaremos no grupo daquelas pessoas que acham tudo isso normal? E a fome e a sede na África...hoje? Boa leitura e até o próximo post.

terça-feira, 3 de março de 2009

O Cavaleiro de La Mancha


Por: Lucyana Ruth


Hoje, vamos ver Dom Quixote, o engenhoso Fidalgo de La Mancha; revolucionário, contemporâneo e filho dos sonhos e das dolorosas aventuras de Miguel de Cervantes Saavedra, homem de vida heróica em sua mocidade e que depois, para ganha-la, escreveu para o teatro, tentou um romance pastoral, La Galatea, e a poesia, Viaje del Parnaso, encontrando a glória em Novelas Ejemplares e Don Quijote, o nobre cavaleiro andante, ainda que a intenção inicial do autor fosse para a sátira, ao escrever sobre as suas lutas com o mundo e seu perfil de homem dividido entre o sonho e a realidade. Dom Quixote e Sancho Pança, o ideal e o real, a fantasia e o senso prático, envolvidos por um mundo que não permite a existência do herói, naquilo que ele tem mais expressivo, a sua nobreza. Don Quixote é fundamentalmente um homem puro, bom. Assim é apresentado por Olavo Bilac, em uma de suas mais belas páginas, uma Conferência no Real Gabinete Português de Leitura, em 12 de Junho de 1905. Bilac, amado por sua lírica, sua poesia, é pouco conhecido pela prosa correta, elegante e rara, amorosamente buscada neste texto, no fundo do seu coração de poeta, onde suas idéias e o seu português castiço nos envolvem límpidas e claro, a razão e o espírito. Sentimos sua melancolia ao descrever a sina de Cervantes e ficamos tristes com ele, depois, a esperança, o resgate, a vitória, ainda que fatal, e o mestre nos devolve a felicidade. Cervantes é um homem santo e será lembrado para sempre.

Em nossa sociedade de hoje, sua presença é tão fortemente necessária, no percurso desta trágica aventura humana pela conquista da liberdade e muitas pessoas desconhecem seu valor neste mundo cada vez mais materialista, que não admite as lúdicas brincadeiras da infância. As frases que mais ouvimos desde pequenos na escola é para que "sejamos práticos ou realistas" , que no mundo como o de hoje, uma sociedade integrada, devemos formar, ao invés de crianças felizes, tecnocratinhas, mini- adultos que têm vergonha de brincar; onde apesar de toda a bagagem tecnológica, e toda a teoria, nunca conheceram uma vaquinha de perto, um bezerrinho, quase nada da natureza, nada de chuva, água da fonte, pio de coruja. Todo erro é reprimido com gozações dos colegas. Uma criança que já nasce destinada a uma profissão ou para uma determinada Universidade, conforme a vontade dos pais, as exigências, oportunidades do mercado. Desrespeito, falta de berço, de educação, é irreverência; gritos e grosseria, é liderança, e por aí vai. A insegurança natural de exprimir algumas palavras é taxada de dislexia, caso para fonoaudióloga; o amadurecimento mais lento, mais conforme as suas próprias naturezas, menos conforme o padrão, é entendido como problemas de retardamento na sua evolução. A criança pura, é vista como boba e tudo isso é assunto para psicólogas. Para tudo e para todos, rótulos , parâmetros comuns, diagnósticos, patologias. Enquanto isso, aquele pequenino ser humano é abafado, impedido de se manifestar e ser conforme o seu tempo. Aonde o lúdico, as brincadeiras de pular corda, amarelinha, chicotinho queimado, elefantinho colorido, passa anel, seu lobo, e inúmeras cantigas de roda. Afinal isso só é valido nas telas de cinema, e para os meninos perdidos da terra do nunca. Para a maioria tudo isso é bobagem; é preciso fazer curso. Tome inglês, ballet, judô, natação, capoeira, pintura, música e outros tantos conforme a moda e a aptidão do gênio. No mais, computador, vídeo games, TV e celular. E tudo ao mesmo tempo. E os heróis e a nobreza? E o Fernão Capelo Gaivota? Isso é assunto dos livros de estória, filmes de cinema, é difícil reconhecê-los nos lugares, nas ruas, no dia-a-dia, sentados ao seu lado. Uma pessoa nobre? Oh! não! Nós não estamos acostumados. Em um mundo onde só o dinheiro tem sentido e a precocidade é a exigência dos pais: "meu filho, meu gênio, minha poupança, meu investimento". Realmente estamos na Idade média e D. Quixote torna possível o renascimento. Eis porque a sua atualidade, o seu valor.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Um Certo Inglês

Por: Lucyana Ruth



“O santo padroeiro da Inglaterra é um tal Jorge de Capadocia, homem de vida airada, aventureiro, correndo de lado a lado como um sem pátria. E os ingleses fizeram dele o seu padroeiro, o chefe simbólico de sua cavalaria. E’ da natureza dos normandos, celtas e saxões, fundidos num só corpo, esse pegadio com a vida nos seus contrastes. Nada para eles é seco como uma fórmula de álgebra, como um teorema; tudo é assim - como esse Jorge que tomaram para padrinho, homem que poderia ser salteador de estrada e terminou como santo da Igreja”.


Este pequeno trecho escrito por José Lins do Rego para o Prefácio de Ingleses, um livro de Gilberto Freyre, de 1942, ano em que foi preso no Recife, por ter denunciado em um artigo publicado no Rio de Janeiro, a existência de atividades racistas e nazistas no Brasil. Esse livro foi dedicado à Sir Stafford Cripps: “...para quem se voltam hoje as melhores simpatia dos que separam a causa anglo- americana dos interesses plutocráticos de Londres e Nova York.” Suas palavras admiráveis e atualíssimas, me fizeram pensar quando cheguei à Inglaterra em 01 de Janeiro de 1998, Dia da Confraternização Universal. A neblina densa e fria cobria as ruas de Londres, estávamos em pleno inverno . De repente um sol tímido apenas a espionar as bordas azuis acinzentadas da cidade para nos dizer bom dia, e voltou rapidamente a se esconder. Acho que também ele estava morrendo de frio. Londres assim, em pleno inverno, com aquela névoa, me lembrou um velho parque industrial, tipicamente inglês daquelas conhecidas fotografias. Esperando o ônibus que nos levou à Hastings, o murmúrio do vento gelado parecia trazer a melodia suave dos Beatles cantando Yesterday / All my troubles seemed so far away / Now it looks as though they're here to stay / Oh, I believe / In yesterday… fiquei pensando neste país ‘miracoloso’ que é a Inglaterra “ (...) na ilha de homens que são os mais práticos da terra, os mais românticos do mundo, gente que penetra na vida como sonda e que é, às vezes, cortiças boiando sobre as águas”, como os viu José Lins. A Inglaterra de tantas histórias, de seus reis e rainhas, uma cultura que forma os pequenos, desde o berço, incorporando os valores dos mitos, lendas, e personagens; o rei Artur e os seus Cavaleiros da Távola Redonda, o velho mago Merlin oculto nas névoas de Avalon, só aparecendo para ajudar a salvar o reino de todos os perigos. E Hobin Hood? O ladrão de todos os ladrões, que escondido na floresta de Sherwood, em verdadeiro ato de desobediência civil, combatia com os seus companheiros o usurpador príncipe John e o malvado xerife de Nottingham e sua turma da pesada, procurando ajudar a restauração do Rei Ricardo Coração de Leão; ou seja, um "fora-da-lei", homem comum do povo e seus semelhantes, lutando contra um regímen autoritário, para reestabelecer a Lei e a ordem real. A Inglaterra do grande Shakespeare, de Charles Dickens, Thomas More, Percy Bysshe Shelley, George Eliot, Adam Smith, Oscar Wilde, James Joyce, e tantos outros da Escócia, da Irlanda, mas profundamente ingleses no seu pensamento e no seu coração. A Inglaterra dos Beatles, Strawbs, The Moody Blues, The Who, Pink Floyd... Saudades deste país de fábulas, de romances, de piratas, aventureiros que só habitam as ruas, assim como nós conhecemos, a noite, entre Maio e Outubro, o restante do ano Londres é apenas a melancólica paisagem do deserto inverno anglo-saxônico. Nada como o encanto suavizador e meigo dos meados de Agosto na praia de cascalhos em Hastings. Ou, então, um passeio, ao meio da tarde, nas luzes e sombras; verdadeiramente pitorescas; das margens do Canal da Mancha. Ou ainda ao longo dos campos de Avon, com Shakespeare nas mãos, lendo e ouvindo a música das palavras se tornar uma coisa quase sagrada; ou pelas colinas de East Sussex, o mais belo, o mais útil repouso que pode ter o espírito sobressaltado, cansado do duro movimento da vida.


“...O inglês soberbo, forrado de puritanismo, conquistador de mundos, pragmáticos, solene, duro, o inglês da convenção, dos retratos de artifício, esse não nos interessa conhecer, porque como uma ficção de romancista medíocre é um homem todo de um lado só, com os mesmos modos de vestir, com os mesmos tiques, as mesmas reações morais. Esse inglês sem profundidade é o que passa pela nossa cabeça logo que nos lembramos dos ilhéus da Grã-Bretanha. Mas este é inglês, como os outros, os ingleses reais, homens de vida agitada, sofredores, poetas, sábios, mágicos, Nelson, Byron, o Dr. Johnson, Carlyle, David Cooperfield e, como uma súmula de toda a humanidade, Shakespeare. Sim, como uma súmula da humanidade, como um ponto de contacto que todos os homens do mundo têm com a Inglaterra...”


De uma coisa se pode ter a certeza: Além dos livros que contam a história, dos escândalos que não hão de faltar, das modas que sempre inventam, e que são copiadas pelo mundo inteiro, da política, só por si ; uma revolta certa na Irlanda; novas guerras na Geórgia, Rússia, Afeganistão, em grande parte da África, uma só rebelião, complicações efervescentes de todo o lado no Oriente Médio, apesar das políticas equivocadas do próprio Tio Sam e inimizades estridentes entre os radicais no poder, para além de tudo, enfim, o mundo tem sempre uma certeza: como dizia Emerson “Os ingleses são homens que se mantém firmes em suas botas”.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Ensaio sobre a Cegueira


Reproduzo aqui um artigo que Edevaldo Filho escreveu para o Jornal O Monitor ( www.omonitor.info)

" Hoje, a última hora da manhã seria dedicada ao comentário sobre o último capítulo de teologia moral... Leu o título: " Notas para uma Utopia". Depois as estranhas reflexões:" Pergunta: um plano de Estado pode ser um plano de felicidade?" Resposta: sim, sob certas condições." Quais condições?" Antes de tudo, que o Estado se manifeste sob a forma de "status". É preciso, portanto, que suas finalidades dinâmicas sejam alcançadas. Eis por que o progresso jamais poderá levar à felicidade..."" Além disso, podemos considerar que a técnica, nos seus principais campos de aplicação, está no fim de sua carreira. O fornecimento de energia potencial é superior ao consumo. A técnica entra insensivelmente na sua terceira fase. A primeira foi gigantesca; visava edificar o mundo das máquinas. A segunda foi racional, tendo por objetivo o perfeito automatismo. A terceira é mágica, pois dá vida aos autômatos, ao dar-lhes sentido. A técnica adquire um caráter de encantamento; dobra-se aos desejos. Ao ritmo junta-se a melodia. Vemos nascer uma nova forma de ser; já não precisamos de chave para o mistério..."" Essa é a situação a partir da qual podemos chegar à felicidade. É preciso que todos estejam juntos, em todos os aspectos; a terra deverá fechar-se sobre si mesma, em espaço vital cerrado. Tomará a forma de uma ilha, e as ilhas são o mais antigo refúgio da felicidade...""O segundo objetivo é a supressão do proletariado. Só pode ser atingido cortando o mal pela raiz -- atacando-se os descontentes. O proletariado é o deserdado, e desde a época dos Graccos, tudo que desejamos é uma nova distribuição de heranças. Pouco a pouco as diferenças enfraquecem; o proletariado torna-se universal. O melhor meio seria adaptar o número da população à riqueza, em vez do inverso. A origem de todas as guerras, civis e internacionais, é o excesso de população. É preciso voltar á origem para remediar o mal. Isso pressupõe um império universal. Aumentaríamos assim a quantidade de felicidade, tanto coletiva como individual..."Talvez o mundo estivesse destinado a servir de jogo aos caçadores e aos guerreiros. Nos longos períodos de paz, o desgosto e a inquietação, o "tedium vitae" cresciam como uma febre. Desde Caim e Abel existiam duas grandes raças no mundo, com duas concepções completamente diversas de felicidade. E as duas continuam a viver entre os homens, sucedendo-se no poder. Muitas vezes as duas habitavam o mesmo homem..."
Heliópolis -- Ernst Jünger *



Ensaio Sobre a Cegueira

Por Edevaldo Filho

Ensaio Sobre a Cegueira, o Livro, a Literatura de José Saramago. Ensaio Sobre a Cegueira, Blindness, o Filme, a sétima arte de Fernando Meirelles. Devemos aplaudir, aplaudir muito. É sobre você leitor, sobre mim, sobre a sua cidade e a minha, sobre todos nós, as nossas inter-relações pessoais e com as cidades, formidáveis conglomerados urbanos, desumanos, que construímos ou construíram para nós e que definitivamente fazemos parte, seja o Rio ou Curitiba, Toronto, Tókio, BH, Nova York, São Paulo ou a Heliópolis de Ernst Jünger. Esse o nosso mundo, o nosso tempo, onde quer que exista o predomínio de pessoas insensatas, subjetivismo exacerbado, falta de sabedoria e alguém mal educado, egoísta que olhe e não veja a si próprio, os outros, o outro que existe em nós, o nosso semelhante, o outro semelhante a nós, com suas pequenas alegrias, que também são as nossas, como o bálsamo fino, o lenitivo de todas as horas, a verdadeira fortuna, que é miúda como rosto de criança, iluminada como um sorriso, acolhedora como um abraço amigo, certa como a palavra bendita, diálogo de amor, sincera como um olhar, a intenção, a pureza dos animais, como aquela música, e o silêncio que também é uma espécie de música, a gratidão de um obrigado, o desejo de um bom dia, boa noite, um encontro. Isso é real e ainda existe junto das pessoas raras, dos humildes, dos modestos, do verdadeiro ser humano, seja qual for a cor da sua pele, seu país, a sua condição religiosa, econômica ou social. Essas pequenas alegrias diárias fazem a tal de felicidade que em vão e obstinadamente procuramos algures, muito embora esteja tão perto.


É aqui, nas ruidosas cidades de nós urbanos, que dançamos cegos sob a carga de infindas tristezas que procuramos olvidar, alienados, na superfície das coisas, ocupados em falar com as máquinas, que nos desejam boas compras nas entradas dos Shoppings e nos lembram de apertar os cintos de insegurança nas saídas, em falar sozinhos, nos telefones, nos atendimentos de telemarketing, jogando dados, confessando senhas, comungando os números que em verdade somos. Dos magos da propaganda para os milhões, aprendemos ver a vida como ela realmente é: circula por aí toda hora que o débito é um crédito, no mundo dos cartões, que o plano de doença é saúde e que a bala achada é perdida, que o bandido é o mocinho e que o lobo não é tão mau, afinal, não comeu o Chapeuzinho; graças aos financiamentos de longo prazo, em breve hereditários, já podemos comprar nosso automóvel casa, equipado de luxo, computador de bordo, ar-condicionado, televisão, geladeira, banheiros portáteis, incrivelmente unissexos, confortos da moderna tecnologia que já nos permite, no ócio do trânsito, além de tudo, assistir a novela das oito, que é às nove, chegar na casa condomínio e ainda dormir antes de assistir o café com o presidente, que de fato governa, no caminho de volta para o nosso trabalho.


Em verdade, somos prisioneiros no interior dos nossos carros, cercados por milhões de carros dos outros prisioneiros de quem não somos solidários na fuga impossível dessa enorme solidão onde jazemos perdidos com as nossas circunstâncias, artificiais em sua maioria, tristes condições, duras, tolas, trágicas, que dimanam da nossa intrincada e problemática consciência do ser, ou inconsciência do querer. Essa coisa de ser mano, como alguém sacou, do big brother, o avesso semiológico do ser humano, em convivência que mendiga ser a qualquer preço, ainda que apenas como a sombra invisível de uma personagem de novela. Para além da alegoria do velho Adão, eternamente jovem nas suas transgressões de adolescente, também somos filhos da ignorância, presunção, arrogância, do divórcio absurdo entre ciência e religião, por falta de oriental filosofia, espírito, fineza, cultura, um pouco de psicologia e coragem para bem compreender a voz do inconsciente, os mitos, e deles extrair o bom e o belo, o verdadeiro, a arte de bem viver, a sabedoria; intelectualmente insolentes, soberbos e fabulosos somos nós. Diferentes de todos as outras criaturas, até mesmo daquelas do nosso próprio planeta, somos ingratos exilados do cosmos e frutos tardios de um progresso que nunca vem; simplesmente morremos asfixiados dentro de um contexto sociológico e existencial perverso e auto-destrutivo, dependentes terminais de um sistema compulsivo, competitivo e arrasador, aterrador, sombrio, um sistema antropófago, que nos quer aos bilhões, consumidores, amestrados e impulsivos, depois, arrebatados, no fim violentos. Somos mais úteis doentes, degenerados sociais do que propriamente como criminosos, que é privilégio de poucos diligentes ou acidente de percurso de muitos, os chamados marginais, inclusive por falta de vagas, públicas ou privadas .


Por isso, meu caro e indulgente leitor que perde seus preciosos minutos comigo na irrealidade destas divagações, -- como disse o Melhor: tempo ou dinheiro --, então eu vivo aqui qualquer cidade, onde o meu próximo, -- oh! mentira enorme de todos os profetas --, é meu estorvo, um inimigo e quero vê-lo cada vez mais distante, pois que me rouba o tempo e o pão , me talha o leite, me azeda o vinho e sabe o ranço do meu azeite; assim, ganha e leva todo o meu dinheiro, comprou a minha casa, o meu carro, comprou aqueles que eu amo e me devora o lar; também tirou meu emprego e no estacionamento, no elevador e nas filas intermináveis onde passo os meus dias, ocupa todo os meus lugares; até nas noites de inverno ainda teima em freqüentar os meus sonhos, faz deles pesadelos; no verão, ocupou o meu lugar ao sol, no Natal comprou todos os meus presentes, incluindo as árvores, e na Missa do Galo, -- oh! suprema miséria! --, o próprio Deus me disse que prefere as suas preces às minhas e que é dele as primícias e as suas bênçãos. Depois disso, acho que foi depois disso..., a sua face medonha eu nunca mais consegui enxergar. Agora meu caro leitor não deixe que ninguém mais saiba desse segredo: resolvi matar o meu inimigo; ainda não sei como... mas, psiu!, acho que vou jogá-lo do sexto andar.


Rio de Janeiro, (Vargem Grande), Maio de 2008.


* Jünger, Ernest - Heliópolis; tradução de Aulyde Soares Rodrigues - Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1981.

Reencontro com Machado de Assis


Em homenagem ao centenário de morte de Machado de Assis, reproduzo aqui o artigo que escrevi para o meu Jornal O Monitor ( www.omonitor.info)




Reencontro com Machado de Assis

por: Lucyana Ruth

“Daqui a pouco será crepúsculo. O sol, em fins de tarde de outono, estará brilhando morno sobre o Rio de Janeiro. Irá bater com sua luz nas janelas fechadas de um prédio antigo, no Cosme Velho. Ninguém atenderá, porque o dono da casa, viúvo e solitário, saiu para um último passeio, e não vai voltar.


Machado morreu de madrugada, após cinco meses de dores e quatro anos de solidão. Perguntaram-lhe se não queria fazer vir um padre. E ele, que não entrava na igreja desde o dia de seu casamento, respondeu a custo, pois que a língua ulcerada lhe doía e pesava na boca: “Não. Isso seria uma hipocrisia”. Era 29 de setembro, 1908. Faltavam quinze minutos para as 4 da manhã (...) . ”


O texto acima, extraído do fascículo dedicado a Machado de Assis, n.16 de Os Imortais da Literatura Universal, da antiga Abril Cultural, é um trabalho da escritora, tradutora e ensaísta paulistana Hildegard Feist. Está aqui reproduzido por sua qualidade, lição de beleza e concisão; a arte para descrever, talvez, o momento supremo da vida do nosso maior artista literário, Joaquim Maria Machado de Assis.


Recebi para publicar nesta edição em Crônicas do Lisboa, Viagens em Busca da Alma, do escritor, amigo e mestre Luiz Carlos Lisboa. Além de refletir sobre a delicadeza com que devemos nos aproximar da essência das coisas para buscar conhecê-las, lembra e homenageia Machado, por ocasião do centenário de seu falecimento. Pensei: - Porque não prestar também O Monitor, uma homenagem a esse escritor imortal, muitas vezes personagem de suas personagens, o primeiro prosador de nossa língua, seu maior e mais completo homem de letras. Autodidata, apaixonado pelos livros , contista e romancista, está no time dos grandes gênios da literatura mundial, a espera de novas edições e traduções nesta época de comunicação global. Foi também poeta, crítico literário e teatral, dramaturgo, ensaísta e um jornalista respeitado, que superou todas as suas circunstâncias: era um mestiço, míope, gago e epiléptico, foi órfão, era pobre, nascido no morro do Livramento. Isso tudo engendra muitas dificuldades, tanto no Brasil de hoje como no de então. Machado, sempre foi um gênio, mas na segunda fase, foi o escritor completo, consciente da sua condição de homem ; plenamente realizado na vida, no amor e na arte. Dominou como poucos o seu idioma, que enriqueceu e ajudou a recriar, com a experiência de ávido leitor, tradutor, trabalhador incansável. Nos contos e romances, suas obras imortais, perenes, se aproxima, se debruça delicadamente nos profundos recantos de nossa alma, observa e reflete sobre os atos que praticamos consciente ou inconscientemente em nosso dia-a-dia, nossas crenças, mitos, convicções, desvendando também o âmago das pessoas, através da fineza com que nos observa como tipos psicológicos, como todo clássico, de maneira atemporal, e com tudo isso, compõe as tramas e suas personagens . Essa ascensão ele muito deveu a Carolina, seu amor, mulher, mãe, enfermeira, cinco anos mais velha que o escritor, madura, inteligente e culta; com ela se casou em 12 de novembro de 1869. Foram trinta e cinco anos, enamorados, lendo e escrevendo juntos, no quarto, nas salas e na varanda da velha casa, passeando de mãos dadas, eternos companheiros, pela Praça, pelo Largo, pelas ruas do Cosme Velho.


“ A estada em Friburgo, na paz das montanhas, fê-lo rever certos valores e posições e enveredar por novos caminhos. O sol não deixava de luzir sobre os campos, nem os passarinhos paravam de cantar só porque Joaquim Maria tinha dores ou se contorcia em ataques epiléticos. E ele concluiu que o homem está só, pobre chocalho da inveja, do ódio, da ambição. Que a natureza é indiferente e absurda. Que a vida é amarga e fugaz. E que, diante da miséria humana, não vale a pena chorar; o melhor é rir - um riso amargo, não importa - e contemplar. Essas convicções sempre o acompanharam, mas só se firmaram clara e definitivamente após o retiro nas montanhas fluminenses, em Memórias de Brás Cubas(...)”.


Desejo a todos uma boa leitura. Termino esse editorial com um pensamento do mestre, no seu ultimo livro revisado por Carolina: “ Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura dura muito tempo.”