terça-feira, 26 de agosto de 2008

Ensaio sobre a Cegueira


Reproduzo aqui um artigo que Edevaldo Filho escreveu para o Jornal O Monitor ( www.omonitor.info)

" Hoje, a última hora da manhã seria dedicada ao comentário sobre o último capítulo de teologia moral... Leu o título: " Notas para uma Utopia". Depois as estranhas reflexões:" Pergunta: um plano de Estado pode ser um plano de felicidade?" Resposta: sim, sob certas condições." Quais condições?" Antes de tudo, que o Estado se manifeste sob a forma de "status". É preciso, portanto, que suas finalidades dinâmicas sejam alcançadas. Eis por que o progresso jamais poderá levar à felicidade..."" Além disso, podemos considerar que a técnica, nos seus principais campos de aplicação, está no fim de sua carreira. O fornecimento de energia potencial é superior ao consumo. A técnica entra insensivelmente na sua terceira fase. A primeira foi gigantesca; visava edificar o mundo das máquinas. A segunda foi racional, tendo por objetivo o perfeito automatismo. A terceira é mágica, pois dá vida aos autômatos, ao dar-lhes sentido. A técnica adquire um caráter de encantamento; dobra-se aos desejos. Ao ritmo junta-se a melodia. Vemos nascer uma nova forma de ser; já não precisamos de chave para o mistério..."" Essa é a situação a partir da qual podemos chegar à felicidade. É preciso que todos estejam juntos, em todos os aspectos; a terra deverá fechar-se sobre si mesma, em espaço vital cerrado. Tomará a forma de uma ilha, e as ilhas são o mais antigo refúgio da felicidade...""O segundo objetivo é a supressão do proletariado. Só pode ser atingido cortando o mal pela raiz -- atacando-se os descontentes. O proletariado é o deserdado, e desde a época dos Graccos, tudo que desejamos é uma nova distribuição de heranças. Pouco a pouco as diferenças enfraquecem; o proletariado torna-se universal. O melhor meio seria adaptar o número da população à riqueza, em vez do inverso. A origem de todas as guerras, civis e internacionais, é o excesso de população. É preciso voltar á origem para remediar o mal. Isso pressupõe um império universal. Aumentaríamos assim a quantidade de felicidade, tanto coletiva como individual..."Talvez o mundo estivesse destinado a servir de jogo aos caçadores e aos guerreiros. Nos longos períodos de paz, o desgosto e a inquietação, o "tedium vitae" cresciam como uma febre. Desde Caim e Abel existiam duas grandes raças no mundo, com duas concepções completamente diversas de felicidade. E as duas continuam a viver entre os homens, sucedendo-se no poder. Muitas vezes as duas habitavam o mesmo homem..."
Heliópolis -- Ernst Jünger *



Ensaio Sobre a Cegueira

Por Edevaldo Filho

Ensaio Sobre a Cegueira, o Livro, a Literatura de José Saramago. Ensaio Sobre a Cegueira, Blindness, o Filme, a sétima arte de Fernando Meirelles. Devemos aplaudir, aplaudir muito. É sobre você leitor, sobre mim, sobre a sua cidade e a minha, sobre todos nós, as nossas inter-relações pessoais e com as cidades, formidáveis conglomerados urbanos, desumanos, que construímos ou construíram para nós e que definitivamente fazemos parte, seja o Rio ou Curitiba, Toronto, Tókio, BH, Nova York, São Paulo ou a Heliópolis de Ernst Jünger. Esse o nosso mundo, o nosso tempo, onde quer que exista o predomínio de pessoas insensatas, subjetivismo exacerbado, falta de sabedoria e alguém mal educado, egoísta que olhe e não veja a si próprio, os outros, o outro que existe em nós, o nosso semelhante, o outro semelhante a nós, com suas pequenas alegrias, que também são as nossas, como o bálsamo fino, o lenitivo de todas as horas, a verdadeira fortuna, que é miúda como rosto de criança, iluminada como um sorriso, acolhedora como um abraço amigo, certa como a palavra bendita, diálogo de amor, sincera como um olhar, a intenção, a pureza dos animais, como aquela música, e o silêncio que também é uma espécie de música, a gratidão de um obrigado, o desejo de um bom dia, boa noite, um encontro. Isso é real e ainda existe junto das pessoas raras, dos humildes, dos modestos, do verdadeiro ser humano, seja qual for a cor da sua pele, seu país, a sua condição religiosa, econômica ou social. Essas pequenas alegrias diárias fazem a tal de felicidade que em vão e obstinadamente procuramos algures, muito embora esteja tão perto.


É aqui, nas ruidosas cidades de nós urbanos, que dançamos cegos sob a carga de infindas tristezas que procuramos olvidar, alienados, na superfície das coisas, ocupados em falar com as máquinas, que nos desejam boas compras nas entradas dos Shoppings e nos lembram de apertar os cintos de insegurança nas saídas, em falar sozinhos, nos telefones, nos atendimentos de telemarketing, jogando dados, confessando senhas, comungando os números que em verdade somos. Dos magos da propaganda para os milhões, aprendemos ver a vida como ela realmente é: circula por aí toda hora que o débito é um crédito, no mundo dos cartões, que o plano de doença é saúde e que a bala achada é perdida, que o bandido é o mocinho e que o lobo não é tão mau, afinal, não comeu o Chapeuzinho; graças aos financiamentos de longo prazo, em breve hereditários, já podemos comprar nosso automóvel casa, equipado de luxo, computador de bordo, ar-condicionado, televisão, geladeira, banheiros portáteis, incrivelmente unissexos, confortos da moderna tecnologia que já nos permite, no ócio do trânsito, além de tudo, assistir a novela das oito, que é às nove, chegar na casa condomínio e ainda dormir antes de assistir o café com o presidente, que de fato governa, no caminho de volta para o nosso trabalho.


Em verdade, somos prisioneiros no interior dos nossos carros, cercados por milhões de carros dos outros prisioneiros de quem não somos solidários na fuga impossível dessa enorme solidão onde jazemos perdidos com as nossas circunstâncias, artificiais em sua maioria, tristes condições, duras, tolas, trágicas, que dimanam da nossa intrincada e problemática consciência do ser, ou inconsciência do querer. Essa coisa de ser mano, como alguém sacou, do big brother, o avesso semiológico do ser humano, em convivência que mendiga ser a qualquer preço, ainda que apenas como a sombra invisível de uma personagem de novela. Para além da alegoria do velho Adão, eternamente jovem nas suas transgressões de adolescente, também somos filhos da ignorância, presunção, arrogância, do divórcio absurdo entre ciência e religião, por falta de oriental filosofia, espírito, fineza, cultura, um pouco de psicologia e coragem para bem compreender a voz do inconsciente, os mitos, e deles extrair o bom e o belo, o verdadeiro, a arte de bem viver, a sabedoria; intelectualmente insolentes, soberbos e fabulosos somos nós. Diferentes de todos as outras criaturas, até mesmo daquelas do nosso próprio planeta, somos ingratos exilados do cosmos e frutos tardios de um progresso que nunca vem; simplesmente morremos asfixiados dentro de um contexto sociológico e existencial perverso e auto-destrutivo, dependentes terminais de um sistema compulsivo, competitivo e arrasador, aterrador, sombrio, um sistema antropófago, que nos quer aos bilhões, consumidores, amestrados e impulsivos, depois, arrebatados, no fim violentos. Somos mais úteis doentes, degenerados sociais do que propriamente como criminosos, que é privilégio de poucos diligentes ou acidente de percurso de muitos, os chamados marginais, inclusive por falta de vagas, públicas ou privadas .


Por isso, meu caro e indulgente leitor que perde seus preciosos minutos comigo na irrealidade destas divagações, -- como disse o Melhor: tempo ou dinheiro --, então eu vivo aqui qualquer cidade, onde o meu próximo, -- oh! mentira enorme de todos os profetas --, é meu estorvo, um inimigo e quero vê-lo cada vez mais distante, pois que me rouba o tempo e o pão , me talha o leite, me azeda o vinho e sabe o ranço do meu azeite; assim, ganha e leva todo o meu dinheiro, comprou a minha casa, o meu carro, comprou aqueles que eu amo e me devora o lar; também tirou meu emprego e no estacionamento, no elevador e nas filas intermináveis onde passo os meus dias, ocupa todo os meus lugares; até nas noites de inverno ainda teima em freqüentar os meus sonhos, faz deles pesadelos; no verão, ocupou o meu lugar ao sol, no Natal comprou todos os meus presentes, incluindo as árvores, e na Missa do Galo, -- oh! suprema miséria! --, o próprio Deus me disse que prefere as suas preces às minhas e que é dele as primícias e as suas bênçãos. Depois disso, acho que foi depois disso..., a sua face medonha eu nunca mais consegui enxergar. Agora meu caro leitor não deixe que ninguém mais saiba desse segredo: resolvi matar o meu inimigo; ainda não sei como... mas, psiu!, acho que vou jogá-lo do sexto andar.


Rio de Janeiro, (Vargem Grande), Maio de 2008.


* Jünger, Ernest - Heliópolis; tradução de Aulyde Soares Rodrigues - Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1981.

Reencontro com Machado de Assis


Em homenagem ao centenário de morte de Machado de Assis, reproduzo aqui o artigo que escrevi para o meu Jornal O Monitor ( www.omonitor.info)




Reencontro com Machado de Assis

por: Lucyana Ruth

“Daqui a pouco será crepúsculo. O sol, em fins de tarde de outono, estará brilhando morno sobre o Rio de Janeiro. Irá bater com sua luz nas janelas fechadas de um prédio antigo, no Cosme Velho. Ninguém atenderá, porque o dono da casa, viúvo e solitário, saiu para um último passeio, e não vai voltar.


Machado morreu de madrugada, após cinco meses de dores e quatro anos de solidão. Perguntaram-lhe se não queria fazer vir um padre. E ele, que não entrava na igreja desde o dia de seu casamento, respondeu a custo, pois que a língua ulcerada lhe doía e pesava na boca: “Não. Isso seria uma hipocrisia”. Era 29 de setembro, 1908. Faltavam quinze minutos para as 4 da manhã (...) . ”


O texto acima, extraído do fascículo dedicado a Machado de Assis, n.16 de Os Imortais da Literatura Universal, da antiga Abril Cultural, é um trabalho da escritora, tradutora e ensaísta paulistana Hildegard Feist. Está aqui reproduzido por sua qualidade, lição de beleza e concisão; a arte para descrever, talvez, o momento supremo da vida do nosso maior artista literário, Joaquim Maria Machado de Assis.


Recebi para publicar nesta edição em Crônicas do Lisboa, Viagens em Busca da Alma, do escritor, amigo e mestre Luiz Carlos Lisboa. Além de refletir sobre a delicadeza com que devemos nos aproximar da essência das coisas para buscar conhecê-las, lembra e homenageia Machado, por ocasião do centenário de seu falecimento. Pensei: - Porque não prestar também O Monitor, uma homenagem a esse escritor imortal, muitas vezes personagem de suas personagens, o primeiro prosador de nossa língua, seu maior e mais completo homem de letras. Autodidata, apaixonado pelos livros , contista e romancista, está no time dos grandes gênios da literatura mundial, a espera de novas edições e traduções nesta época de comunicação global. Foi também poeta, crítico literário e teatral, dramaturgo, ensaísta e um jornalista respeitado, que superou todas as suas circunstâncias: era um mestiço, míope, gago e epiléptico, foi órfão, era pobre, nascido no morro do Livramento. Isso tudo engendra muitas dificuldades, tanto no Brasil de hoje como no de então. Machado, sempre foi um gênio, mas na segunda fase, foi o escritor completo, consciente da sua condição de homem ; plenamente realizado na vida, no amor e na arte. Dominou como poucos o seu idioma, que enriqueceu e ajudou a recriar, com a experiência de ávido leitor, tradutor, trabalhador incansável. Nos contos e romances, suas obras imortais, perenes, se aproxima, se debruça delicadamente nos profundos recantos de nossa alma, observa e reflete sobre os atos que praticamos consciente ou inconscientemente em nosso dia-a-dia, nossas crenças, mitos, convicções, desvendando também o âmago das pessoas, através da fineza com que nos observa como tipos psicológicos, como todo clássico, de maneira atemporal, e com tudo isso, compõe as tramas e suas personagens . Essa ascensão ele muito deveu a Carolina, seu amor, mulher, mãe, enfermeira, cinco anos mais velha que o escritor, madura, inteligente e culta; com ela se casou em 12 de novembro de 1869. Foram trinta e cinco anos, enamorados, lendo e escrevendo juntos, no quarto, nas salas e na varanda da velha casa, passeando de mãos dadas, eternos companheiros, pela Praça, pelo Largo, pelas ruas do Cosme Velho.


“ A estada em Friburgo, na paz das montanhas, fê-lo rever certos valores e posições e enveredar por novos caminhos. O sol não deixava de luzir sobre os campos, nem os passarinhos paravam de cantar só porque Joaquim Maria tinha dores ou se contorcia em ataques epiléticos. E ele concluiu que o homem está só, pobre chocalho da inveja, do ódio, da ambição. Que a natureza é indiferente e absurda. Que a vida é amarga e fugaz. E que, diante da miséria humana, não vale a pena chorar; o melhor é rir - um riso amargo, não importa - e contemplar. Essas convicções sempre o acompanharam, mas só se firmaram clara e definitivamente após o retiro nas montanhas fluminenses, em Memórias de Brás Cubas(...)”.


Desejo a todos uma boa leitura. Termino esse editorial com um pensamento do mestre, no seu ultimo livro revisado por Carolina: “ Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura dura muito tempo.”